o homem que queria conhecer o mar


                    


                                                                                         Para a Cecília


O homem pouco sabia do sitio  e do tempo de onde viera.  Esquecido que estava porque a memória já lhe recusava agruras do passado.
Tinha lido em livros antigos com letras desenhadas, indecifráveis que havia, lá longe, o mar. E que mar sussurrava murmúrios, diferentes, quando diferentes eram os seus estados de alma.

O homem fez da aventura de conhecer o mar, a razão de amealhar os dias de que lhe era feito o resto da vida. O que passara a dar-lhe um novo sentido; à vida.
O homem pôs-se a caminho em busca do mar com a urgência das coisas do destino, infinitas, inevitáveis.

E descalço para que  as botas não atrapalhassem o andar e porque o calçado era coisa de fidalgos e o homem, para além de querer conhecer o mar só sonhava ser poeta, fez-se ao caminho, aventurando-se pelos precipícios da descoberta.
Um dia, quando as estrelas começavam a pendurar-se no céu, suspensas nesse infinito de coisa inatingível, misterioso, como se estivessem presas por fios invisíveis para não se despenharem contra o peito das pessoas que tinha a ousadia de as olhar – conclusão do homem – o homem, guiado por um sussurro desconhecido, deu-se conta, no cimo de uma falésia, à beira do abismo que tinha chegado.

Lá em baixo estava o mar.
O desconhecido.
O sonho.
O presságio
A utopia.
A ambição do conhecimento.

Mergulhou os descalços pés, doridos deste ter sido andarilho até ali chegar e com o frio, vindo da água de que o mar era feito e que lhe penetrou até às auricolas do coração ofegante, ouviu o murmúrio que – pensou - ser a voz do mar a chamá-lo par junto de si.
Disse-lhe o homem; que ainda tinha vida para viver e sonho para sonhar de poeta querer ser. Roubou à areia um buzio para que o murmúrio do mar sempre o acompanhasse para dele estar perto.

E o homem, descalço, partiu para a grande cidade que perto ficava do mar, à procura de palavras, porque um antigo poeta já morto tinha escrito que “a cidade era um chão de palavras pisadas”.
E nessa relíquia que é o tempo que gastamos sem dar por isso, o homem que já conhecia o mar, desembaciou  os olhos das lágrimas do inconformismo com o suave vento da maresia e disse de si para si.

“ Neste tempo em que vivemos, repletos de todas as penúrias, principalmente as da alma, as do espírito, as do saber, as do conhecimento, as do amor, substituídas diariamente pela promoção do analfabetismo,  pela piroseira da falta de gosto, pelo consumismo da idiotice, pela idolatria da ignorância, pelo império do número com que se constroem os défictes, todos os déficites de que, parece, somos os únicos culpados.
Tempos, já vividos, em que nos enchemos de coisas, odres de objetos e sentimentos sem préstimo, todavia, agora que estamos a dar por nós, pobres, despidos de enganos, minguados de solidões, de afetos e de amores, é preciso ser capaz de escrever com palavras simples e autênticas, que digam o sermos hoje e aqui, sem subterfúgios, sem mentiras, sem falsidades , confiantes que, onde estamos, ainda podemos ser o amanhã que queremos. Pode ser em poemas. Tanto faz.”.

Foi a pensar nisto que o homem que já conhecia o mar, entrou na cidade que “era um chão de palavras pisadas”.
O homem descalço com um buzio em que ouvia os murmúrios do mar começou a apanhar as palavras pisadas do chão da cidade e com elas passou a escrever poemas em guardanapos de papel roubados nas esplanadas das avenidas e que, depois deixava que voassem, vento afora, na esperança que almas encantadas os lessem.

Assim foi no principio de todas as ilusões.
Um dia em que os murmúrios do mar eram quase silêncios no buzio de âmbar que trazia pendurado no coração, o homem, revoltado pela indiferença, escreveu na estatua mais importante da cidade.

“O poeta procura que o vidro das palavras seja justo, transparente, translúcido, para poder ser penetrado pelos cristais dos sentimentos, pela a luz remanescente da solidões experimentadas,  pela a alquimia dos martírios que nos inventaram e por esta incontinente amargura de ver a realidade, esta, com a crueldade da lucidez.
Só assim o poeta se justifica, se compromete, se renova e cresce,  redescobrindo “no santo e na senha” a ordem, para com as palavras, a sua única arma, nos poder habitar por de dentro da alma.

O poeta é sempre um malvado, um incómodo, aquele que subverte, um portador cruel do entulho que nos entope a vida, o que adiamos, mortos que estamos do pavor da verdade, aquele que, cruel, teima em inventar palavras inconvenientes que nos mantenham despertos, porque nele, no poeta, a dimensão é o infinito, a conveniência é o absurdo e nele reside, a sofrida loucura de com palavras quere mudar o mundo.
A missão do poeta é lutar na busca da palavra que diga, que expresse, que fale, que grite a verdade e o seu sentimento e que agarre os corações como se garras fossem, neste absurdo mundo onde nos tiranizamos uns aos outros”.
Escrito isto na importante estátua da cidade que era “um chão de palavras pisadas”, o homem que só queria conhecer o mar e o seu murmúrio, começou a descer a grande avenida principal, descalço, com um pé na borda do passeio e outro na estrada, fingindo coxear com o búzio, ouvindo o murmúrio do mar.

Foi preso pelas justas forças da ordem e dos bons costumes porque estava atrapalhando o tráfego.
Na cadeia o homem conheceu, Jeremias que se dizia o poeta da felicidade e que afirmava saber a formula do homem ser eternamente feliz porque um mago vindo de um planeta desconhecido de todas as ciências terrenas, lhe tinha revelado o alquímico segredo da felicidade. Por isso o mantinha preso.

Passado o tempo que o tempo teve, soltaram o homem que só queria conhecer o mar e, quando voltou à cidade que era “um chão de palavras pisadas”, só encontrou palavras que lhe falavam de fome, tristeza, abandono, sofrimento, morte, solidão, lágrimas, indiferença, luxúria, egoísmo, petulância,  mando, poder, inveja…
E chorou, o homem que só queria conhecer o mar…

Bebeu meia dúzia de “ginjinhas com elas” que lhe encorajaram as veias e, num insalubre sanitário público, aninhou-se o mais possível na estafada pia e puxou o autoclismo. A força da água levou-o a atravessar estreitos canos e os intestinos de cidade que “era um chão de palavras pisadas”, antes de desaguar no rio e, arrastado pele corrente, seguir, na vazante em direção ao mar.
Diz quem o viu por alturas da Torre de Belém que ia feliz. Outros, juram ter visto uma caravela de quinhentos a caminho da India para buscar as riquezas que nos minguam.

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A poesia de Cecília Vilas Boas e o se livro “Âmbar e Mel” fala de tudo isto:

Fala do mar:
“ Nesta madrugada, ainda morna do dia anterior, vim sozinha ter contigo (mar). Por entre escarpas rochosas, dunas e vegetação, chego a ti. Descalça, em tuas areias finas e brancas, sigo o chamamento das tuas águas, sinto o cheiro forte a maresia, oiço o grito alucinante das gaivotas…”

Fala da vida:
“A solidão, inventa sonhos exaustos no crepúsculo da vida
Embriagando no silêncio, os dias vazios já sem sentir
Invada de tédio a incerteza da razão”.


Fala do amor:
“Quero ser pétalas de carinho, amor e compreensão, flor que rebenta em silêncio, sem queixume ou dor.”

Fala da indiferença e da solidão:
“Palavras, gestos, dádivas de amor/momentos de simples atenção/uma luz ténue ilumina o viver/ d´almas pálidas e carentes/ sofridas, incrédulas e desgastadas/ a quem pouco basta, muito pouco/ para calar o grito da indiferença/secar as lágrimas do silêncio/ amenizar a dor lancinante da solidão.”


Fala de sonhos:
“…nesta passagem ilusória que é a vida/ abraçamos sonhos que se esvaem no tempo.”


E fala de carinho e de coisas simples de que todos nos esquecemos, ávidos que andamos das nossas importâncias, no terno poema “nobreza d´alma” dedicado à sua avó que, a mim, me transporta para a minha alentejana juventude, onde tudo era pureza, felicidade de linho,  de “âmbar e mel” e de não conhecer, ainda, do outro lado do mundo os “demónios mascarados de anjos de redenção” que por ai andam, misturados como se gente fossem.

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Em “Âmbar e Mel – Janelas de Poesia”, Cecília na filigrana das suas palavras, sussurradas, mansas, repletas de metáforas de simplicidades, transparentes como o cristal, diz-nos também da revolta, do inconformismo, do sofrimento, da paixão e dessa grande ambição que está agarrada à pele de quem sente; a humana humildade de querer gritar, aos outros, vigorosos sentimentos para que na solidão construam as imaginadas companhias.



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Por tudo isso peço; leiam, façam o favor de ler. Ler Cecília. Ler “Âmbar e Mel”. Ler outras coisas. Leiam, leiam muito, poesia, imaginação, sonho, utopia, o que for. Leiam, não se deixem amansar pelo marasmo deste defunto analfabetismo de alma em que nos andam a meter, sem dar-mos por isso, amestrando-nos como elementares seres que tivemos a culpa de ter nascido.

Sejam incómodos convosco e com os outros e a palavra de que se faz a poesia é o chão de todas as virtudes para essa incomodidade-

Leiam, por favor. Só assim, o sofrimento de quem escreve é docemente recompensado.



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Nota final: Num simples e lacónico comunicado a Polícia Marítima informou ter encontrado ao largo de Sesimbra, o corpo de um homem descalço que veio não se sabe de onde nem de que tempo e que só queria conhecer o mar. Tinha no bolso do coração um búzio para ouvir os secretos murmúrios do mar e na alma, todos os livros escritos e por escrever. Pensava-se poeta e como tal, distraído que andava, esqueceu-se de aprender a nadar. Não fez mal. O mar trata, sempre, bem os seus amigos.


Afonso Valente Batista     

  

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